sábado, 23 de março de 2013

Mozart condenado

 


"Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, a criança lá conseguira arranjar o seu buraco e dormia. Virou-se, mesmo a dormir, e vi-lhe o rosto à luz da lâmpada. Ah! que rosto adorável. Aquele casal produzira uma espécie de fruto dourado. Aquele rebanho pesado originara este êxito de encanto e de graça! Debrucei-me sobre aquela fronte lisa, sobre aquele suave movimento de lábios e disse para mim: "Aqui tenho eu um rosto de compositor, aqui tenho Mozart em criança, aqui tenho uma bela promessa de vida!" Os principezinhos das lendas não eram diferentes dele. Protegido, cercado, cultivado, que não poderia ele vir a ser? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, lá se comovem todos os jardineiros. Isola-se a rocha, cultiva-se a rosa, favorece-se a rosa... Mas não existe jardineiro para os homens. Mozart menino será marcado, tal como os outros, pela máquina batedora. Mozart virá a ter as mais altas alegrias da música apodrecida no fedor dos cafés-concertos. Mozart está condenado..."

Antoine de Saint-Exupèry
Um Sentido para a vida

quinta-feira, 21 de março de 2013

A Senhora Xavier a revolução soviética

Encontro-me, agora, em casa da Senhora Xavier e sinto-me um pouco comovido. São, assim, trezentas francesas de 60 a 70 anos, perdidas como ratos cinzentos numa cidade de quatro milhões de habitantes. São antigas professoras primárias ou governantas das meninas do antigo regime e tiveram de passar pela Revolução. Tempos esquisitos. O mundo antigo desmoronava-se sobre elas como um templo, a Revolução esmagava os fortes e dispersava os fracos para os quatro cantos do mundo como joguetes de uma tempestade, mas não tocou sequer nas trezentas governantas francesas. Eram tão miúdas, tão reservadas, tão corretas! Na esteira das belas alunas, haviam aprendido, durante tanto tempo, a tornar-se invisíveis! Ensinavam-lhes as doçuras da língua francesa e essas belas alunas imediatamente apanhavam, no laço das palavras mais doces, os belos namorados da Guarda. As velhas governantas não sabiam explicar que poder secreto escondiam o estilo e a ortografia, uma vez que nunca se tinham servido dele para o amor. Ensinavam também as boas maneiras, música e dança; e esses segredos, que entre elas apenas favoreciam a correção mais requintada, tornavam-se nessas meninas qualquer coisa de vivo e de ligeiro. E as velhas governantas envelheciam, vestidas de preto, severas e discretas, presentes mas invisíveis, como a virtude, as recomendações e a boa educação. E a Revolução, que cortou as flores radiosas, nem sequer roçou, pelo menos em Moscou, aqueles ratos brancos.

A Senhora Xavier tem 72 anos. E a senhora Xavier chora. Sou o primeiro francês que, de há trinta anos para cá, se senta em casa dela. A Senhora Xavier repete, pela vigésima vez: "Se eu tivesse sabido... se eu soubesse... podia perfeitamente ter arranjado um quarto". E vejo a porta aberta, e ponho-me a pensar nos estrangeiros, que também moram naquele apartamento e que não hão-de deixar de denunciar doze vezes o nosso conciliábulo. Sou ainda muito romanesco. A senhora Xavier atualiza devidamente a lenda:
 - Se abri a porta - conta ela orgulhosamente - foi de propósito. Recebo uma visita tão gentil! Todas as vizinhas vão ficar com ciúmes. [...]
Agora, deixo-me ficar à escuta, deixo-a contar. Interroguei-a acerca da Revolução, porque o ponto de vista dela interessava-me. O que é uma revolução? E como é que se consegue subsistir, quanto tudo se desmorona à nossa volta?
- Uma revolução - conta-me a anfitriã - uma revolução é uma coisa muito aborrecida.

Antoine de Saint-Exupèry
Um sentido para a vida

quinta-feira, 14 de março de 2013

Túmulos para a eternidade


De cada túmulo da Terra
ergue-se, etérea, tênue, para a altura
uma coluna de silêncio e de mistério.

De cada túmulo cavado
por toda a imensa curva
do planeta perdido:
dos túmulos soberbos
erguidos em pompa régia
de mármores e bronzes;
dos túmulos anônimos
que a herva humilde apagou
nas pequenas necrópoles;
dos túmulos infinitamente esquecidos
dos campos de batalha;
dos trágicos túmulos humaníssimos
à beira das estradas;
dos túmulos que não foram abertos
por mão nenhuma de coveiro,
mas a si mesmos se construíram
sobre os corpos tombados
nas solidões e nos desertos;
dos túmulos patriarcais, antigos,
que duros, mássiços blocos
de granito recobrem;
dos túmulos que ainda ontem não existiam,
e só nesta pura manhã receberam
seu tesouro sagrado:
de cada túmulo da Terra,
atravessando, imponderável, invisível,
toda a infinita realidade
dos espaços, das vidas, das estrelas,
ergue-se para a altura
uma coluna de mistério e de silêncio.

De um silêncio que nenhum ruído terreno
perturbará jamais.
De um mistério de dor ou de alegria
cuja lembrança apenas Deus guardou
na sua Memória Eterna...

Tasso da Silveira

quarta-feira, 13 de março de 2013

Vertigo, a maior obra do cinema

Londres (EFE) - Vertigo (Um Corpo que Cai) de Alfred Hitchcock foi designado o “melhor filme de todos os tempos” superando o Cidadão Kane de Orson Welles, segundo a última votação da revista Sight and Sound do British Film Institute (BFI), a Filmoteca de Londres.

Esta publicação especializada leva a cabo esse tipo de votação à cada dez anos e a obra dirigida por Welles ganhou o primeiro posto nesta lista dos 50 melhores filmes durante as últimas cinco décadas. Na última votação, os experts situaram na primeira posição a Vertigo (Um Corpo que Cai), o filme de suspense que o diretor britânico Alfred Hitchcock dirigiu em 1958, superando por 34 votos a Cidadão Kane, e não incluíram na lista nenhum filme rodado na última década.

A estes experts em Cinema – um total de 846 entre distribuidores, críticos, acadêmicos e escritores – foi pedido que valorizassem os trabalhos em função de sua relevância na história cinematográfica, suas conclusões estéticas ou o impacto que teve cada filme à nível pessoal tomando por base sua própria visão do Cinema.

Com um elenco que inclui aos atores James Stewart e Kim Novak, Vertigo trata sobre um agente de polícia aposentado, Scotty Ferguson, que sente pânico às alturas. Na última eleição que a revista realizou há uma década, o filme de Hitchcock, ao que o próprio diretor britânico se referiu como sua “obra mais pessoal”, havia perdido por apenas cinco votos de Cidadão Kane (1941).
Cena de Um Corpo que Cai

Igualmente ao filme de Welles, Vertigo recebeu criticas contraditórias quando estreou mas ganhou prestigio com o passar do tempo. Na classificação do BFI, o filme de Yasujiro Ozu, Tokyo Story (1953), passou da quinta para a terceira posição, sendo que La Regle Du Jeu (A Regra do Jogo, 1939) de Jean Renoir, perdeu um posto até o quarto.

Entre os dez primeiros filmes houve duas novas entradas: Man With a Movie Camera (1929) de Dziga Vertov, na oitava posição, e The Passion of Joan of Arc ( A Paixão de Joana d'Arc, 1927) de Carl Theodor Dreyer, na nona posição. Dos trabalhos selecionados, o mais recente é 2001: A Space Odyssey (Uma Odisséia no Espaçode Stanley Kubrick, na sexta posição. O diretor da revista Sight and Sound, Nick James, indicou aos meios britânicos que o resultado da classificação “reflete as mudanças realizadas na cultura da crítica cinematográfica” nos últimos anos.


  1. Vertigo (Um Corpo que Cai) - Hitchcock, 1958;
  2. Cidadão Kane - Welles, 1941;
  3. Tôkyô monogatari - Ozu, 1953;
  4. A Regra do Jogo - Renoir, 1939;
  5. Sunrise: a Song for Two Humans - Murnau, 1927;
  6. 2001: Uma Odisséia no Espaço - Kubrick, 1968;
  7. The Searchers - Ford, 1956;
  8. Man With a Movie Camera - Vertov, 1929;
  9. A Paixão de Joana d'Arc - Dreyer, 1927;
  10. 8 ½ - Fellini, 1963

Comentário de Flavio Mateos:

Já o sabíamos. Mas ainda que por razões não de tudo convincentes, satisfaz o lado da justiça, ainda que os meios de comunicação de Argentina [e Brasil] destaquem mais que “Cidadão Kane” deixou de ser o número um. Enfim, nossas razões, cremos que de mais peso, podem ser lidas aqui, para quem esteja interessado.

Destacamos em negrito, por outra parte, os filmes que vale à pena conhecer. O feito de que tanto a obra magna de Hitchcock como a obra magna de Ford (The Searchers) estejam listados entre os dez primeiros filmes é mais que auspicioso. Quando enganadores como Fellini ou Kubrick deixarem de aparecer ali, seguramente o mundo será mais justo, melhor dizendo, cristão.